O Sentimento De Exclusão Social Em TPB

quinta-feira, 23 de agosto de 2012

No rol de pacientes difíceis, “intratáveis”, encontramos os pacientes borderline, que em geral utilizam os atendimentos de emergência da  psiquiatria e de outras clínicas médicas, em virtude de explosões agressivas, tentativas de suicídio, comportamentos autodestrutivos, queixas somáticas. Por vezes tornam-se casos policiais, com boletins de ocorrência, detenções, devido a atitudes sociopáticas. Outras vezes são encaminhados para atendimentos psiquiátricos e/ou psicológicos, tornando-se usuários das redes de saúde pública, tendendo a estabelecer uma relação negativa com esses serviços e profissionais, marcado pela hostilidade e pelo abandono do tratamento, sendo considerados por muitos como “sem jeito” e sem indicação terapêutica.

O transtorno de personalidade borderline tem provocado um grande impacto social e familiar, devido às suas manifestações psicopatológicas que compreendem muitas facetas e características de comportamentos mal-adaptados e sintomáticos, entre eles: - dificuldade marcada no controle dos impulsos, com ênfase em comportamentos agressivos e autodestrutivos (abuso de substâncias, de álcool, automutilações, distúrbios alimentares, pequenos furtos, tendência à promiscuidade, gastos  excessivos, jogo compulsivo, etc.); - sentimento de persecutoriedade; - estados depressivos e tentativas de suicídio; - estabelecimento de relações interpessoais caóticas, pouco diferenciadas, manipulativas e agressivas; - instabilidade afetiva; - dificuldades no ambiente de trabalho e/ou escolar, com baixa produtividade; - queixas orgânicas recorrentes.

Kernberg, Selzer, Koenisberg, Carr e Appelbaum propõem o conceito de 
Organização de Personalidade  Borderline, que permite englobar, dentro do nível de funcionamento  borderline, as personalidades infantis, histéricas, narcisistas, esquizóides, personalidade múltipla (como-se), anti-sociais, abarcando dessa forma a heterogeneidade dos sintomas e as comorbidades, considerando-se que a ameaça de ruptura do conhecido ou de uma relação afetiva, por vezes pode desencadear um episódio psicótico. Consideram três 
critérios estruturais do ponto de vista clínico: uma integração difusa da identidade, caracterizando a Síndrome de Difusão da Identidade ; conceito mal integrado do próprio self e de outras pessoas importantes, manifestando-se clinicamente por um sentimento crônico de vazio, auto-percepções contraditórias, comportamentos contraditórios não integrados emocionalmente de forma significativa, percepções caricaturais e empobrecidas dos outros, levando a relações interpessoais instáveis, pouco empáticas e marcadas pelo 
baixo limiar à frustração. 

A capacidade de avaliação realística dos outros e das situações é prejudicada e em geral invadida por aspectos conflitivos, condensados, de caráter genital e pré-genital; o uso predominante de mecanismos de defesa primitivos (splitting, negação, identificação projetiva, idealização e negação) cuja função é proteger o ego contra os conflitos insuportáveis entre amor e ódio que impedem a integração da identidade, levando a uma fragilidade do ego e a uma adaptação precária; e um teste de realidade preservado, com prejuízo em situações de stress. O paciente borderline é um ser frágil, às vezes cordial, amigável, competente, até envolver-se em situações difíceis, estressantes, em que aflora um padrão característico de desorganização, instabilidade da auto-imagem, humor e relações interpessoais, sendo propenso a episódios psicóticos breves em momentos de intensa ansiedade ou em situações não estruturadas, suscetível de passar por episódios de despersonalização ou desrealização.

Pode experimentar sentimentos de depressão, ansiedade, pânico, raiva, confusão, tendência à auto-agressão, com relacionamentos repletos de “cenas”, parecendo não prever as 
conseqüências de seus atos, guiando-se mais pelo princípio do prazer, acaba por representar para o outro ora o céu, ora o inferno. 
Essas características sugerem padrões inconscientes que se expressam por 
pensamentos, sentimentos e atos, existindo como hábito inflexível e danoso, algo que o indivíduo reluta em reconhecer. Pode apresentar defesas anti-sociais que o traem, deixandovestígios, por associarem-se à culpa, ao comprometimento da lógica em situações pouco estruturadas, à persecutoriedade, à angustia, enquanto o indivíduo anti-social não apresenta 
indícios de remorsos, primando pela racionalização e pela indiferença em relação ao mau causado ao outro.

Com tal estruturação, tende a apresentar dificuldades profundas nos relacionamentos interpessoais, com marcadas dificuldades no âmbito social e familiar, que também se expressam nas manifestações transferenciais e contratransferenciais. 
Um dos problemas no manejo terapêutico é a intensa agressão que se expressa na relação transferencial e que exige que o terapeuta possa conter, tolerar e compreender essas reações, sem agir de forma retaliatória e sem sentir sua identidade ameaçada, uma vez que a fragmentação das manifestações transferenciais mobilizam reações contratransferenciais 
intensas. O paciente borderline  é descrito na literatura psicanalítica como um paciente de difícil acesso, devido à baixa aderência ao tratamento, à impetuosidade, à  inveja acentuada que dificulta o acesso e o aproveitamento das interpretações. Aceitar ajuda implica em quebrar a onipotência, sendo freqüente a reação terapêutica negativa e as manifestações transferenciais negativas.

O grande desafio é criar um espaço mental onde o pensar possa ocorrer, tornando representável o irrepresentável, pois é a capacidade de representação que propicia a 
transformação das imagens em palavras dentro do nível da realidade, o que pode ocorrer no processo analítico por meio da introjeção das interpretações. O estabelecimento da aliança 6 terapêutica é algo particularmente difícil, devido  à alta probabilidade de ocorrência de acting-out, com manifestações transferenciais e contratransferenciais intensas, rápidas, instáveis, exigindo que o terapeuta seja ativo, flexível e continente. A fim de preservar sua capacidade de pensar e não se perder no turbilhão agressivo e angustiante do borderline, deve interpretar desde o início as manifestações transferenciais negativas.  As ameaças constantes e o risco suicida podem acarretar sérias mudanças terapêuticas, levando a modificações do setting, de acordo com a acuidade preditiva do terapeuta, que precisa ficar alerta para a necessidade de uma hospitalização, podendo também implicar problemas éticos e legais.

No manejo terapêutico torna-se  de grande importância a clareza e explicitação do contrato e a manutenção do enquadramento enquanto fator estruturante do ego. O impasse é transformar o comportamento destrutivo em uma específica constelação transferencial, o que pode ser garantido pelo contrato terapêutico, desde que haja uma adaptação técnica do contrato psicanalítico. Kernberg apresenta três tipos de manifestações transferenciais 
negativas que podem ocorrer separada ou simultaneamente: transferência psicopática (uso de deliberada mentira ou omissão de material importante); transferência paranóide (com base na identificação projetiva e nos objetos internalizados primitivos e persecutórios, podendo evoluir para a transferência psicopática); - transferência depressiva (que possibilita o reconhecimento do até então não reconhecível – pois inaceitável ao self). Quando as transferências psicopáticas são sistematicamente interpretadas tendem a ceder seu predomínio à transferência depressiva, assinalando uma transformação estrutural da organização borderline em organização neurótica. 

Ao mesmo tempo em que a contratransferência pode ser um obstáculo, também é a possibilidade de acesso e aproximação ao paciente.  Desde que o terapeuta possa aceitar seus momentos de não compreensão, sua capacidade empática poderá ser restituída juntamente com a capacidade interpretativa, podendo, dessa forma, conter e transformar a angústia do paciente tão maciçamente projetada sobre ele. O terapeuta funciona como um agente corretivo, propiciando a re-aprendizagem de padrões sadios de comportamento, por meio dos recursos internos do paciente, necessários para uma melhor coesão psicológica. Na realidade, sua função é ajudar o paciente a 
começar a pensar, contendo dessa forma o acting-out, por meio da experiência emocional corretiva de uma relação psicológica não abusiva.  Independentemente da abordagem utilizada, esse intrincado processo psíquico ocorre e se manifesta, podendo ou não ser reconhecido e trabalhado pelo terapeuta ou pela equipe multiprofissional.

Considerando-se que o transtorno de personalidade é egossintônico e somente uma séria desestabilização nos padrões patológicos possibilita um espaço para a percepção da dificuldade ou sintoma, essa abertura deve ser aproveitada para se mobilizar os recursos egóicos do paciente e colocá-lo em tratamento nesse momento específico, a fim de que possa encontrar uma solução mais adaptativa para suas dificuldades e desenvolver a possibilidade de uma psicoterapia intermitente, à qual possa retomar quando necessário.
Torna-se necessário avaliar os resultados obtidos por cada paciente de acordo com suas possibilidades e limitações, para que os progressos possam ser considerados e integrados na relação transferencial e para que o terapeuta e a equipe multiprofissional não tenham minadas sua capacidade de conter e pensar. Penso que os objetivos dos serviços oferecidos e dos processos terapêuticos precisariam ser repensados, ressaltando-se os aspectos contratransferenciais, assim, talvez, o paciente borderline não fosse à priori considerado intratável, mas tratável dentro de um enquadramento mais específico e estruturado, com objetivos delimitados. Muitas vezes é aexpectativa do terapeuta frente aos resultados de um processo terapêutico, que o torna pouco aceitável. Nesse sentido, a eficácia de uma psicoterapia parece intimamente relacionada à capacidade de contenção do terapeuta e com o manejo não só da transferência, mas também da contratransferência, principalmente dos aspectos narcísicos do terapeuta. 

Levando-se em conta que o diagnóstico do paciente borderline se caracteriza pela instabilidade afetiva, ainda não reconhe grau que tal instabilidade precisa atingir para que o indivíduo procure tratamento? Pode-se considerar o momento de busca de ajuda, como um momento crítico no qual falham as habituais formas  de lidar com a realidade interna e externa e, devido a maior vulnerabilidade, poderia haver maior predisposição para aceitar a ajuda psicológica para o problema. Essas questões são complexas, exigindo que o terapeuta possa perceber a demanda e a vulnerabilidade do outro para além de sua própria técnica, podendo repensá-la e modificá-la, porém sem perder sua identidade pessoal e profissional. Eis um grande desafio para a pesquisa clínica.

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